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segunda-feira, 6 de maio de 2013

Erro de proibição e o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei: análise do art. 21 do CP



Erro de proibição e o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei: uma análise do art. 21 do Código Penal
Partindo do pressuposto da teoria tripartida da estrutura analítica do crime (conduta típica, antijurídica e culpável), temos que o erro de proibição, segundo a doutrina dominante, é hipótese que exclui a culpabilidade do agente, se invencível, e importa em uma diminuição de pena, se vencível; uma vez que se trata de uma falha na compreensão, por parte do agente, de que a conduta praticada se encontrava no âmbito de proibição penal. A razão de ser deste instituto provém da necessidade prévia e inafastável de que as pessoas conheçam a proibição, ou seja: possua consciência da antijuridicidade, para que se possa motivar em sentido contrário ao agir delituoso.(1)
Muito embora esta posição seja consagrada na doutrina nacional e estrangeira, percebe-se que o conteúdo do art. 21 do CP vem causando certa confusão, principalmente na jurisprudência que, por vezes, nega a aplicabilidade do erro de proibição, em razão da disposição: “o desconhecimento da lei é inescusável”, contida na 1.ª parte do referido preceito, ignorando por completo o disposto na 2.ª parte, qual seja: “O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”. A título de exemplo, dentre tantas outras decisões no mesmo sentido, assim já se decidiu: “não se pode admitir a alegação de erro sobre a ilicitude do fato criminoso, se o princípio fundamental é o de que ‘o desconhecimento da lei é inescusável’ (art. 21 do CP)”.(2)
Diante deste cenário, parece necessário retomar a razão de ser do princípio da irrelevância do desconhecimento da lei (insculpido na 1.ª parte do art. 21 do CP), bem como demonstrar a sua (in)compatibilidade com o instituto do erro de proibição (previsto na 2.ª parte do art. 21 do CP) em nosso ordenamento jurídico.
Historicamente, o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei foi identificado, de forma prevalente, com a irrelevância do erro de proibição no Direito Penal; todavia isso não significa que o fundamento deste princípio fosse a espécie intrínseca desta modalidade de erro. Pelo contrário, tem-se perfeitamente plausível apontar para o referido princípio um fundamento autônomo que, assim, passaria a ser utilizado para dar novo fundamento à irrelevância do erro quanto ao direito e, desta forma, uma nova compreensão e delimitação ao problema da falta de consciência da ilicitude.(3)
Segundo ensina Jorge de Figueiredo Dias, a primeira correlação que se costuma fazer a fim de buscar o fundamento para o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei penal é no sentido de uma irrefragável presunção de conhecimento. Ocorre que, em suas palavras, “o pluralismo legislativo por um lado; o acentuado caráter técnico da lei, por outro; os intrincadíssimos problemas (mesmo para especialistas) suscitados pela interpretação e aplicação – tudo torna absolutamente impossível, nos nossos dias, a afirmação de que é normal o conhecimento da lei. Pelo que a tese da presunção absoluta, a fundamentar-se só em si e por si mesma, viria a desembocar em uma pura ficção [...] que só poderia ser conexionada com o problema da responsabilidade do homem pelo seu comportamento dentro de uma mundivivência crassamente positivista que concebe a lei como produto de uma vontade arbitrária”.(4)
Disso, o referido autor extrai que tal presunção (se é que se deve falar de presunção) deve buscar uma razão intrínseca que a fundamente e com a qual deverá conexionar-se o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei. Com isso, inexoravelmente, tal princípio acabará por perder muito da sua rigidez, uma vez que ele passará a só poder ser verificado se, quando e onde se afirma a razão que materialmente o fundamenta.
Ocorre que, a partir de tais premissas, não é outra a conclusão senão a de que o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei não possui caráter absoluto (o que se observa, aliás, em qualquer princípio),(5) uma vez que deva ceder à limitação da concreta possibilidade de o agente vir a cumprir a obrigação a ele imposta pela lei. Dessa forma, inviável negar aplicabilidade ao instituto do erro de proibição por esta premissa, se a exigência de que o indivíduo conheça a lei se mostrar impossível de ser feita no caso em concreto. Trata-se da submissão do referido princípio à ordem constitucional, a qual traz em seu corpo o princípio da culpabilidade que embasa a máxima nullum crimen sine culpa. Segundo esta ótica, não é o princípio constitucional que deve se enquadrar ao comando legal, mas sim o dispositivo infraconstitucional se adequar à Constituição que o fundamenta. Se da interpretação do ordenamento jurídico não se puder extrair outra interpretação da lei, senão a absoluta irrelevância do desconhecimento da lei, independentemente do grau de culpabilidade do agente, então este dispositivo deve ser considerado como não recepcionado pela Constituição, devendo ser sua aplicação afastada.
Alheio a este debate, outro é o fundamento que Cabral de Moncada(6) empresta para o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei, entendendo que “quer-se significar apenas que a obrigatoriedade dos preceitos da lei se dá independentemente do conhecimento ou desconhecimento dele por parte dos cidadãos, princípio este absoluto e sem limitações”, ou seja, o desconhecimento da lei pelo agente em nada afetaria a “abstracta intangibilidade dos seus efeitos objetivos”.
De fato, realmente parece ser este o sentido adequado do princípio, tendo em vista que o desconhecimento da ilicitude de um comportamento (erro de proibição) e o desconhecimento de uma norma legal (erro de direito) são coisas completamente distintas: a ilicitude não se encontra no fato ou na lei em si, mas na relação de contrariedade que se estabelece entre a ação praticada e o ordenamento jurídico.(7) Que o conhecimento da lei se presuma perante todos os seus destinatários, em razão dos meios oficiais de publicação, a fim de dar-lhe publicidade e vigência, não é nenhuma arbitrariedade; todavia, no que concerne à ausência, ou mesmo má-compreensão do conteúdo proibitivo da norma, bem como o erro sobre a ação praticada se amoldar à proibição legal, trata-se de matéria atinente à culpabilidade do agente que em nada se confunde com o desconhecimento da lei penal.
Conforme as lições de Cezar Roberto Bittencourt,(8) o instituto opera exatamente no erro de conhecimento do agente em relação à lei em abstrato. Assim, tem-se de um lado a norma abstrata com plena validade e eficácia e, de outro lado, o comportamento em concreto do agente, sendo exatamente nessa relação que se estabelecerá (ou não) a consciência da ilicitude. O erro de proibição, diferentemente do que a ignorância da lei poderia resultar, de modo algum deve ser compreendido como capaz de afastar a eficácia (e/ou) a validade da lei penal posta, a qual continuará vigente inclusive para quem a alegue desconhecer (em virtude do princípio da irrelevância do desconhecimento da lei), uma vez que o instituto opera tão somente no campo da culpabilidade do agente. De igual forma, não se presta o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei a conferir qualquer elemento interpretativo para a aplicação do erro de proibição, tratando-se, como já exposto, de um princípio meramente atinente aos fundamentos de validade do direito.
Por derradeiro, deve-se perceber que o erro de proibição deriva de um erro quanto ao conhecimento do caráter ilícito da conduta praticada e não especificamente quanto à lei. Nos dizeres de Alcides Munhoz Netto, “A diferença reside em que a ignorância da lei é o desconhecimento os dispositivos legislados, ao passo que a ignorância da antijuridicidade é o desconhecimento de que a ação é contrária ao Direito. Por ignorar a lei, pode o autor desconhecer a classificação jurídica, a quantidade da pena, ou as condições de sua aplicabilidade, possuindo, contudo, representação da ilicitude do comportamento. Por ignorar a antijuridicidade, falta-lhe tal representação. As situações são, destarte, distintas, como distinto é o conhecimento da lei e o conhecimento do injusto”.(9) Por outro lado, “mesmo quando se possa afirmar que a falta de consciência da ilicitude proveio, em concreto, da ignorância da lei penal, é aquela falta quem, no seu conteúdo intrínseco, suscita um problema de culpa cuja resolução não põe em causa o fundamento de validade da lei que se não conhecia. Neste enquadramento se torna patente a invalidade do princípio da irrelevância do desconhecimento da lei penal para nos dizer onde e quando se levanta o problema da falta de consciência da ilicitude”.(10)
Assim, do que se pretendeu demonstrar, tem-se por equivocadas as decisões (reiteradas) proferidas pelos Tribunais de Justiça que negam aplicabilidade ao instituto do erro de proibição (previsto na 2.ª parte do art. 21 do CP), calcadas em uma suposta contradição ao princípio da irrelevância do desconhecimento da lei (previsto na 1.ª parte do art. 21 do CP), isso em razão de uma completa ausência de relação entre as duas previsões, muito embora (por uma técnica legislativa duvidosa) se encontrem dispostos no mesmo artigo penal. Ademais, como aqui também se procurou desenvolver, mesmo se, por acaso, se insistir em fundamentar o referido princípio na presunção de conhecimento da lei, este ainda deve ceder, à luz da do princípio constitucional da culpabilidade, sempre que se verificar ser inexigível que o indivíduo, no caso em concreto, conhecesse a lei e, portanto, viesse a se motivar em sentido contrário ao agir delituoso.

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